Sexta-Feira, 12 de Fevereiro de 2010 @
BLACKBIT
O nome desta coluna é "Viajando na Onda", certo? Então, com licença:
São Paulo parou, naquela manhã fria de 13 de setembro de 2010. Pensou-se em outro blackout, como o de 2009. Mas era algo diferente. Não havia, de fato, energia. O metrô, os trens, semáforos, elevadores, telefones, nada funcionava. Além dos equipamentos elétricos, também não havia carros, ônibus e motos nas ruas. Disso resultou que naquele dia a metrópole estava mais calma, silenciosa. Estranhamente, alguns automóveis e telefones funcionavam, mas só os modelos mais antigos, o que ajudou a dar à cidade um ar nostálgico. Ninguém conseguia obter informações sobre a pane, porque as rádios e TVs estavam fora do ar, apesar de seus geradores a diesel.
Foi numa estação de rádio que o mistério começou a ser elucidado. Na sala técnica da Transamérica, o engenheiro libanês Sami Farid Younes, que chegara ao trabalho antes da cidade parar, testou um telefone Ericsson, que deu linha. Conseguiu discar para duas ou três pessoas, das raras que também possuíam aparelhos antigos, e soube das particularidades do apagão, se é que se poderia dar este nome ao episódio. O engenheiro percebeu logo aquilo que os especialistas não entendiam: o problema não era elétrico, mas digital. Tudo aquilo que dependia de códigos binários, de centrais eletrônicas informatizadas e computadores em geral, estava parado. Mas tudo que era analógico, funcionava.
Havia um velho transmissor que poderia ser ligado ao gerador. Com algumas inversões de cabos, foi possível colocar em funcionamento o Estúdio Transamérica, aquele onde antigamente os artistas gravavam seus discos. Nele, tudo era analógico, portanto imune ao blackbit, já se referiam assim ao fenômeno. A rádio reuniu rapidamente uma pequena equipe, dividida nas tarefas de locutor, repórter e operador. Enquanto as raras informações iam chegando, os intervalos eram preenchidos por velhas fitas com músicas e discos de vinil, por acaso encontrados no arquivo morto, agora vivo, fazendo ressurgir a velha profissão de discotecário. Uma canção de Raul Seixas revelou-se premonitória: "O dia em que a Terra Parou".
A Transamérica começou a difundir as primeiras informações, transmitindo para os poucos aparelhos de rádio sintonizados, a maioria à pilha, ou velhos Philco e TKR da frota de carros antigos. Alguns desses veículos foram convertidos em alto-falantes de praças, e ficaram cercados de pessoas que ouviam as notícias sobre o misterioso fenômeno que desligou os aparelhos digitais. A partir das notícias irradiadas pela única emissora no ar, aos poucos a cidade foi encontrando modos de recolocar-se precariamente em funcionamento. A energia elétrica começou a voltar em velhas centrais de transmissão. Mas elas só puderam ser religadas quando foram localizados em casa os funcionários, já aposentados, que ainda sabiam operar algumas antiquadas máquinas desativadas.
Outras emissoras foram recuperando seus sinais, mas as TVs, excessivamente dependentes de tecnologias digitais, permaneciam desligadas. A pane prolongou-se por dias, e como além de continuar vivendo, as pessoas necessitavam de alguma distração, combinou-se que as novelas continuariam a ser encenadas. No rádio, naturalmente. A Globo levou seu elenco aos antigos estúdios da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro. E todos descobriram, espantados, que alguns dos atores mais conhecidos tinham vozes que não combinavam com seus personagens. Outros, antes apagados, com o recurso do áudio ganharam destaque pela interpretação cheia de nuances, realçadas por inflexões, entonações, respirações, pausas, tempos. Diante da escassez de fitas magnéticas para gravações, tudo era feito ao vivo. As músicas atuais voltaram a ser ouvidas, mas só quando executadas pessoalmente pelos artistas. Nem todos, porém, conseguiam reproduzir no ar as gravações feitas com os recursos de produção em estúdio. A publicidade manteve-se à custa de testemunhais. Anunciantes, donos de marcas centenárias, buscaram nos arquivos de produtoras alguns jingles antigos, preservados em fitas de rolo.
Como dizia o Chacrinha, cujo apelido veio de um programa de rádio feito numa chácara, "nada se cria, tudo se copia". E o novo rádio, ou o novo mundo, recriou um jornal famoso, aproveitando para resgatar o mesmo patrocinador, que deu nome ao Repórter Esso, agora apresentado por William Bonner e Fátima Bernardes. E foi pelo rádio que todos ouviram: o blackbit fora causado por uma experiência mal calculada dos norte americanos com um novo sistema de satélites. Ao redor dos carros e seus alto falantes, ou em volta dos rádios nas casas, as pessoas escutaram Bonner e Fátima informar, como se anunciassem o fim da guerra: em uma semana, tudo voltaria ao normal. Nenhum sociólogo explicou, nenhum instituto de pesquisas captou, nenhum psicólogo interpretou, mas, ao contrário da esperada comemoração, a sensação que varreu o Brasil foi de tristeza. As coisas não seriam mais como antes. A TV, jamais seria a mesma. E o rádio, finalmente, voltaria a ser... o mesmo.
Lui Riveglini é atualmente locutor de comerciais, documentários e videos institucionais, foi voz padrão do canal AXN por 13 anos e também atuou como consultor artístico da Rede Transamérica de Comunicação. Foi apresentador das rádios Transamérica (várias vezes), Jovem Pan FM e Bandeirantes, entre outras. Implantou e dirigiu a Rede Mix de Rádio.