Sábado, 02 de Outubro de 2021 @
A saída de José Lino do programa Rádio Vivo, da Rádio Itatiaia, me afeta não apenas como jornalista e pesquisadora/professora de rádio, mas também me toca de forma particular. Fui produtora do programa por 14 anos, de 1987 a 2001, e trabalhei lado a lado com o José Lino durante todo este tempo, numa convivência profissional e também entre nossas famílias. Ele é o meu padrinho de casamento e falar dele é relembrar minha própria trajetória na Itatiaia.
José Lino é um dos grandes nomes do rádio em Minas Gerais. Dono de uma voz e um estilo inconfundíveis, começou em 1954 e criou, na Rádio Itatiaia, o Rádio Vivo, o primeiro talk show radiofônico de Minas Gerais, que foi ao ar, pela primeira vez, em 15 de novembro de 1976. Iniciou sua carreira por acaso, ao visitar a Itatiaia e ser convidado por Januário Carneiro para fazer o plantão esportivo, já que o funcionário responsável havia faltado naquele dia. Trabalhou também na Inconfidência, na Rádio Globo do Rio de Janeiro e nas TVs Itacolomi e Bandeirantes. Foi vereador por dez anos em Belo Horizonte.
Nasceu em 14 de outubro de 1936, em Patos de Minas/MG e, ainda bebê, os pais Florentino Souza e Armênia de Barros mudaram-se com a família para Belo Horizonte. No esporte radiofônico, José Lino teve atuação destacada, trabalhando em diversas funções, como narrador, comentarista e redator. Como narrador, José Lino teve a felicidade de participar da Copa do Mundo de 1970, no México, quando o Brasil ganhou o tricampeonato mundial.
Mas um episódio vivido por José Lino está presente em todas as coletâneas dos grandes casos da história do rádio mineiro. Era o ano de 1958 e a Rádio Itatiaia tentava, de todas as formas, conquistar a audiência de um público que estava acostumado aos programas de auditório, às grandes orquestras e às radionovelas. A novidade da Itatiaia era uma programação centrada no esporte e no jornalismo, um desafio naquele tempo.
Belo Horizonte foi surpreendida com a notícia de que uns trapezistas alemães, chamados Zugspitzartisten, iriam esticar dois cabos de aço em plena Praça Sete, coração da cidade: o primeiro entre o 25º andar do Edifício Acaiaca e o 10º do Banco da Lavoura, hoje Banco Santander e o segundo cabo entre o terraço do Lavourinha, na esquina de avenida Afonso Pena com rua Tamoios e o alto do prédio da Guanabara, na Afonso Pena com Espírito Santo.
Nestes cabos de aço os trapezistas fariam um passeio em cima de uma motocicleta. Detalhe importante: não seria colocada qualquer proteção para o caso de um acidente. A população provinciana da capital mineira da década de 50 se assustou com a audácia dos trapezistas e, nas esquinas, nos bares e nas casas, o assunto era um só: “Aquela loucura deveria ser proibida?” “A colocação de uma rede protetora deveria ser obrigatória?” “As autoridades deveriam impedir que estrangeiros sujassem de sangue a nossa cidade?” O debate era acalorado e cada um tinha um palpite, uma opinião a dar no caso do passeio de motocicleta dos trapezistas alemães.
O diretor da Itatiaia, Januário Carneiro, reuniu sua pequena equipe e disse aos companheiros que pretendia fazer uma cobertura daquele fato tão importante para a população. Muitas foram as sugestões, mas o dono da rádio rejeitou todas, afirmando que queria algo grandioso e diferente do ponto de vista jornalístico. Januário queria que um jornalista da Itatiaia fizesse o passeio nos cabos de aço junto com os trapezistas. Ele propôs a instalação de uma bicicleta junto ao cabo, para que um repórter acompanhasse tudo ao vivo. A princípio, pode-se pensar que ninguém toparia uma empreitada destas, mas a história não foi bem assim. Januário teve que promover um cara ou coroa, pois dois repórteres daquele tempo queriam, a todo custo, participar da cobertura jornalística do ano. José Lino Souza Barros e Waldir Rodrigues disputaram para ver quem faria a reportagem. José Lino ganhou.
Assim, a população de Belo Horizonte, atônita com o passeio dos trapezistas, ficou ainda mais abalada quando soube que aquela pequena rádio, que nem arranhava a audiência das poderosas concorrentes, iria mandar um repórter para acompanhar ao vivo, lá de cima dos cabos de aço, tudo o que estivesse acontecendo. Eram quatro trapezistas, todos alemães: Rudy e Sylvia – que eram casados – e Alex Schock e Zigward Bach. Alex e Rudy caminhavam pelo cabo de aço e um, que saía primeiro, ficava assentado no meio do caminho, naquela altura maluca, sacudindo a perna e esperando o outro que vinha. O outro passava sobre ele e cada um seguia o seu caminho para o outro lado da Afonso Pena. A Sylvia também participava e o Zigward apenas pilotava a motocicleta por uma razão muito simples: por causa de quedas sucessivas ele já não tinha muita habilidade com as pernas.
Depois da definição da cobertura e do repórter, uma equipe – José Lino inclusive – foi ao hotel onde estavam os trapezistas explicar a eles os planos da rádio. O empresário do grupo achou aquele projeto meio esquisito, mas conversou com os outros companheiros, que aceitaram na hora a proposta. José Lino explica como foi esta reportagem:
“A minha sorte foi decidida no cara ou coroa e a viagem foi feita na moto. Zigward pilotando a moto, que era barulhenta pra caramba, certamente de propósito, para assustar ainda mais e o Alex Shock na parte de baixo. Na verdade, a moto não cairia nunca. Ela não tinha pneus, mas o povo não sabia disso. O aro da roda rolava pelo cabo de aço e o peso maior ficava na parte de baixo como um “João Teimoso”. Como a moto não dava marcha à ré, ela fazia uma manobra de subida para depois voltar ao ponto de partida. A possibilidade de um tombo seria, provavelmente, se o aro da roda deslizasse pelo cabo numa parada rápida”.
Lá do alto do cabo, José Lino abriu uma faixa com a inscrição “RÁDIO ITATIAIA” e foi aplaudido pela multidão que se espremia lá em embaixo. A transmissão feita por Januário, arquivada em fita cassete, apesar da péssima qualidade do som, ainda é possível ouvi-lo falando pausadamente na abertura da transmissão: “Nada há que se compare a esta alucinante arte alemã de bailar em frios e oscilantes cabos de aço a doidas alturas”.
Num outro trecho da cobertura, Januário disse: “As bocas só se abrem para dizer: são uns loucos. Mas não são propriamente loucos. Acima de tudo, corajosos, sim, a não se aperceber a temer a negra e funda garganta que se abre a seus pés, pronta para tragá-los, ávida por devorá-los contra seu forro de pedra, concreto e asfalto”. Desta forma, José Lino Souza Barros participou desta reportagem, mostrando para uma população estarrecida do que um jornalista é capaz. Na realidade, o foco das atenções se deslocou dos Zugspitzartisten para a cobertura da Rádio Itatiaia e, quem nunca tinha ouvido falar na emissora, procurou saber como sintonizar aquela pequena e ousada estação.
A ideia de criar o Rádio Vivo nasceu quando José Lino retornou do Rio de Janeiro, depois de uma experiência na Rádio Globo. Assim, em 15 de novembro de 1976, foi ao ar o primeiro talk show do rádio mineiro, com um slogan bem representativo: O programa que respeita a sua inteligência. E durante 45 anos o programa tem sido a grande marca das manhãs do rádio de Minas, com jornalismo, música, conversa e o estilo José Lino de conduzir uma atração com inteligência, competência, bom humor e senso aguçado da informação. Uma legião de ouvintes acompanhou José Lino durante todos estes anos e pautou sua vida pelos horários e pelas atrações do programa.
Agora, chegou ao fim. Com a venda da Rádio Itatiaia ao mega empresário Rubens Menin, cortes e transferências já foram feitos na empresa, como era de se esperar. José Lino completa 86 anos daqui a duas semanas e o mercado mineiro especulava se os novos donos iriam mantê-lo no cargo de apresentador do principal programa da emissora. A solução foi colocá-lo como a voz do Projeto Memória da emissora e na apresentação de um programete bíblico que irá ao ar diariamente às 6 horas da manhã. O Rádio Vivo, o programa que respeita a sua inteligência, terá uma nova voz a partir de 15 de novembro, no aniversário de 45 anos da atração.
Ficará uma marca no coração do público mineiro. Para sempre José Lino.
Jornalista (UFMG), doutora em Linguística Aplicada (UFMG) com estágio de pós-doutoramento em Comunicação na Universidade de Navarra (Espanha). É professora do Mestrado em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto. É pesquisadora de rádio e tem 20 livros publicados, além de dezenas de artigos em jornais e revistas científicas. Contato: [email protected]